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A literatura como testemunho que persiste: ‘Ainda Estou Aqui’, de Marcelo Rubens Paiva, entre o livro, o filme e o Brasil que insiste em esquecer

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025, Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, colocou novamente sob os holofotes a obra autobiográfica publicada por Marcelo Rubens Paiva em 2015. Com roteiro adaptado por Hilton Lacerda e Paula Gaitán, a produção alcançou notoriedade internacional por sua sensibilidade e precisão ao tratar de um tema ainda doloroso e muitas vezes silenciado no Brasil: os impactos da ditadura militar nas vidas de quem sobreviveu, de quem perdeu familiares, e de quem precisou seguir em frente em meio ao apagamento histórico.



Mas o filme, embora fundamental, é apenas uma das faces dessa narrativa. A obra literária original permanece como um dos testemunhos mais consistentes e necessários da literatura brasileira contemporânea. No livro, Marcelo Rubens Paiva reconstrói o passado de sua família a partir de um ponto de partida intimamente humano: a morte de sua mãe, Eunice Paiva, em 2015. É a partir dessa perda recente que ele reorganiza lembranças, documentos e afetos para, então, contar a história de um dos crimes mais emblemáticos e ainda impunes da história recente do país: o desaparecimento forçado de Rubens Paiva, seu pai, deputado federal cassado e preso pela ditadura em 1971.


Ao contrário de Feliz Ano Velho, sua estreia nos anos 1980, que também tratava de um trauma pessoal — o acidente que o deixou tetraplégico — Ainda Estou Aqui se move em outra direção. O foco é a memória coletiva, familiar e política. O tom é de indignação controlada, de dor que aprendeu a conviver com o silêncio institucional. Eunice, figura central da obra, é reconstruída como símbolo da resistência silenciosa: mãe, advogada, militante e, acima de tudo, mulher que nunca deixou de exigir do Estado uma resposta concreta sobre o paradeiro do marido. Sua força está na persistência — na capacidade de se manter ativa, lúcida e exigente em um país que ainda reluta em reconhecer seus crimes de Estado.


A estrutura da obra é fragmentada, não linear. Marcelo Rubens Paiva escreve como quem remexe gavetas, encontra cartas, lê laudos, telefona para ex-agentes, escuta a mãe e volta a um tempo em que a política se impunha violentamente sobre o cotidiano das famílias. A memória aqui não é apenas matéria literária — é instrumento de justiça, de reparação. O narrador assume o lugar de um herdeiro do trauma, mas não como quem se acomoda no vitimismo. Ele investiga, interroga, atravessa os espaços cinzentos deixados pela História oficial. E é justamente essa busca que faz do livro uma obra profundamente comprometida com a verdade, mesmo quando essa verdade é incômoda.



O impacto do livro também está em sua atualidade. Em uma sociedade brasileira que convive com o avanço de discursos que relativizam a tortura, negam os desaparecimentos e enaltecem personagens do regime militar como heróis da ordem, a narrativa de Marcelo Rubens Paiva é uma pedra no sapato da impunidade. Sua voz ressoa como a de quem está cansado de esperar reparações, mas que mesmo assim não desiste de lutar por elas. O Brasil ainda é um país onde os nomes dos torturadores viram nomes de ruas. Onde se homenageia o AI-5 em palanques. Onde os fantasmas da ditadura ainda fazem campanha nas eleições. Nesse cenário, cada página de Ainda Estou Aqui é um ato de resistência.


Walter Salles, em sua adaptação cinematográfica, optou por preservar essa complexidade. O filme evita o didatismo e a romantização. A narrativa alterna tempos com fluidez, e o uso de imagens de arquivo, diários de Eunice e trechos de cartas e processos judiciais reforçam o caráter documental da obra sem jamais abandonar a força da ficção. A escolha da atriz para interpretar Eunice foi acertada: uma mulher forte, mas cansada. Uma mulher de luto, mas que nunca silenciou. A direção de fotografia aposta em tons sóbrios, melancólicos, que se afinam com o sentimento de perda e com o apagamento que o Estado impôs às famílias vítimas da repressão.


O sucesso do filme no Oscar, em um ano marcado por ataques a instituições democráticas em vários países, e em especial no Brasil — onde nos últimos 30 dias vimos mais uma vez discursos revisionistas ocupando espaços públicos, com tentativas de relativizar os crimes da ditadura militar e a atuação dos órgãos de repressão — escancara a urgência de se ler e reler obras como a de Rubens Paiva. O país que, há poucas semanas, presenciou mais um ataque ao trabalho da Comissão de Anistia por parte de parlamentares que defendem torturadores, é o mesmo país que ainda precisa ouvir que ninguém desaparece sem deixar marcas.



Entre março e abril de 2025, intensificaram-se os embates políticos em torno da memória nacional. A decisão do Ministério dos Direitos Humanos de retomar investigações arquivadas da ditadura provocou reações agressivas no Congresso Nacional, incluindo discursos que tentam justificar a repressão como “necessária para o progresso da época”. É nesse contexto que a literatura de testemunho, como Ainda Estou Aqui, precisa ser reafirmada como espaço de resistência — um espaço onde a verdade pode finalmente ser dita com a densidade que a linguagem jornalística, muitas vezes, não comporta.


Não se trata apenas de um livro de memórias, mas de uma intervenção na história. A dor da perda se transforma em documento. A ausência vira narrativa. A injustiça é transformada em matéria literária. Há, na escrita de Marcelo Rubens Paiva, uma profunda consciência do papel social da literatura. Como afirmou a psicanalista Maria Rita Kehl, que integrou a Comissão Nacional da Verdade, a produção de memória coletiva é uma forma de enfrentamento do trauma. O autor, ao revisitar seu passado, contribui para que o país revise o seu. Ele transforma o luto em luta e o silêncio em palavra. Sua escrita é quase como um ato jurídico — uma petição simbólica pela verdade histórica.


O crítico literário José Miguel Wisnik já afirmou que “a literatura brasileira se constituiu muitas vezes a partir do silêncio e da omissão”. Ao contrário dessa tradição, Ainda Estou Aqui fala. Fala de um tempo que não passou, de uma ferida que não cicatrizou, de uma mãe que seguiu exigindo respostas. Fala de um filho que, diante do luto, entendeu que precisava escrever — não por vaidade, mas por necessidade histórica.



A vitória no Oscar recoloca a ditadura brasileira no centro do debate global. Mas é a literatura de Marcelo Rubens Paiva que garante que esse debate não seja passageiro. O livro é o arquivo afetivo e político de uma geração que perdeu pais, irmãos, filhos — e que, mesmo diante do silêncio do Estado, decidiu falar. Em tempos de revisionismo, Ainda Estou Aqui é uma reafirmação de que a memória não pode ser editada, e que o esquecimento nunca pode ser escolha de um país que pretende ser democrático.


Que o filme siga conquistando plateias. Mas que o livro siga sendo lido, estudado, discutido. Porque a literatura, como já nos ensinou Antonio Candido, é um direito humano. E lembrar, hoje, é um gesto político. Marcelo Rubens Paiva ainda está aqui. E nós também. Com ele. Contra o esquecimento.

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