OPINIÃO | Enquanto houver bolsonaristas no Congresso, o Brasil será refém do golpismo
- Raul Silva
- 10 de ago.
- 10 min de leitura
Por Raul Silva -
Jornalista do Podcast Teoria Literária/Rádio Itapuama FM
Professor especialista em Língua Portuguesa e Literatura

Não é exagero: o golpismo no Brasil só respirará enquanto houver parlamentares bolsonaristas ocupando cadeiras. E não se trata de uma figura de linguagem ou de um exagero retórico: a própria conduta repetida desses grupos prova que a sua presença nas Casas Legislativas é incompatível com o funcionamento pleno da democracia. A semana de 4 a 8 de agosto de 2025 mostrou, em rede nacional e diante do mundo, que uma fração organizada da direita radical está disposta a paralisar o Parlamento, sabotar a agenda pública, impedir que o país avance e testar, de forma deliberada, os limites institucionais para arrancar benefícios pessoais e salvar seu líder. Na Câmara e no Senado, a cena foi explícita: bocas e olhos cobertos por adesivos, correntes nos pulsos, ocupação das Mesas Diretoras e interrupção física dos trabalhos, tudo cuidadosamente encenado para chantagear o país com uma pauta que incluía anistiar golpistas do 8 de janeiro, pautar impeachment de ministro do STF e mexer nas regras do foro por prerrogativa. Isso não é oposição democrática; é método. E método com pedigree autoritário, treinado e reciclado de táticas já vistas no passado.
No auge do motim, uma deputada levou o próprio bebê para o plenário e, em suas redes, admitiu estar “usando sim uma criança como escudo” para constranger a atuação da Polícia Legislativa. É o grau zero da responsabilidade pública e da ética parlamentar, a exploração cínica e calculada da imagem de uma criança para uma encenação que nada tem de política: é puro espetáculo para vídeo curto, clipe de 30 segundos, manchetes instantâneas e engajamento algorítmico nas redes. É o uso de um ser humano indefeso como peça de xadrez em um jogo sujo de propaganda. O episódio virou caso para o Conselho Tutelar e se tornou símbolo de até onde esses atores políticos estão dispostos a ir para manter a narrativa de “perseguição” viva. Não há “liberdade de expressão” que justifique usar uma criança como barreira física em uma tentativa de tumultuar o funcionamento de um Poder da República; há, sim, um abuso calculado de imagem e uma afronta direta ao decoro.
Ao fim de mais de 30 horas de cerco e confusão, as Mesas foram desocupadas, no Senado, com sessão remota e, depois, retomada presencial das votações; na Câmara, com o presidente Hugo Motta repondo a ordem e a Mesa Diretora encaminhando representações contra 14 parlamentares por obstrução física e quebra de decoro. A resposta institucional veio não por bravatas, mas por rito: Corregedoria e, se necessário, Conselho de Ética. E ainda assim, o dano já estava feito: tempo público queimado, comissões esvaziadas, deliberações postergadas e a mensagem tóxica circulando nas redes de que “sem anistia não há paz”. Paz para quem? Para quem atentou contra a democracia, para quem coloca seu próprio destino acima do destino coletivo, para quem não hesita em sabotar o país inteiro em nome da sobrevivência política de um único projeto de poder.
O objetivo: travar o país para salvar o chefe
É cristalino o propósito instrumental dessa obstrução: chantagear o sistema político para blindar Bolsonaro e seus cúmplices em processos que tratam de tentativa de golpe, conspiração e atentado contra a ordem democrática. O que se viu não foi uma reação pontual, mas uma manobra calculada para travar o país até que se atenda a uma pauta que afronta diretamente a Constituição e os princípios mais básicos do Estado de Direito. O chamado “pacote da paz” é, na verdade, uma contrafação semântica e uma ironia cruel: paz, aqui, significaria anistiar criminosos políticos, destruir freios e contrapesos e intimidar o Supremo com ameaças de impeachment fabricadas no calor da milícia digital e amplificadas por redes de desinformação. É uma tentativa de reescrever as regras do jogo para que golpistas não apenas escapem ilesos, mas voltem fortalecidos para repetir os mesmos crimes.

Esse pacote foi verbalizado publicamente pelos próprios obstrucionistas: anistia ao 8 de janeiro, impeachment de Alexandre de Moraes, fim do foro privilegiado; e utilizado como condição explícita para “deixar o Congresso voltar a funcionar”. Em outras palavras: uma minoria radical tentando transformar o Parlamento em refém e condicionar o funcionamento da democracia ao atendimento de exigências inaceitáveis. É a apropriação da instituição legislativa como barricada particular, não para proteger direitos do povo, mas para blindar uma rede de interesses que vai do clã político ao financiamento empresarial de suas campanhas.
Enquanto isso, o que deixa de andar? Tudo o que diz respeito à vida concreta de quem trabalha, estuda, cuida da família e depende de políticas públicas. Quando a oposição ocupa mesa, cancela sessão e cria tumulto, não se vota: atenção básica, financiamento da educação, merenda, residências terapêuticas, fila do SUS, recomposição orçamentária de universidades e institutos, programas de proteção a mulheres, crianças e adolescentes, reciclagem urbana, moradia. Projetos urgentes, que poderiam significar mais médicos na ponta, mais escolas funcionando, mais cestas básicas distribuídas, ficam parados porque um grupo prefere encenar o papel de vítima de uma suposta perseguição.
É didático notar que, assim que o Senado retomou as votações, aprovou-se a faixa de isenção do IR até dois salários mínimos (assunto que atinge diretamente a renda de milhões de brasileiros) após dois dias desperdiçados com o teatro obstrucionista. Essa comparação expõe o contraste: enquanto a encenação rende cliques e visualizações nas redes, o trabalho real do Parlamento produz impacto concreto na vida de trabalhadores e aposentados. A coreografia do caos tem custo social imediato e prolongado: cada sessão perdida é um atraso nas soluções para problemas que não esperam, como filas de cirurgias, falta de medicamentos e escolas sem infraestrutura.
“Boca tapada” como estética de guerra cultural
A fita na boca e nos olhos não é um improviso: é estética de guerra cultural, cuidadosamente planejada para ser fotografada, filmada, recortada e viralizada nas redes. Trata-se de um símbolo calculado, um recurso visual que condensa a narrativa da “censura” e do “martírio” em uma imagem de impacto imediato, facilmente compartilhável em grupos, canais e perfis militantes. Essa encenação não se limita ao momento no plenário: ela nasce como estratégia de comunicação, já com legendas e hashtags prontas para disparo, capaz de atravessar fronteiras digitais e ser usada como munição em páginas internacionais de extrema direita. É a tradução visual de um discurso que se repete: o de que a minoria radical é “oprimida” por um sistema que, na realidade, ela mesma tenta subverter.

A encenação busca mobilizar bases digitais, criar conteúdo replicável e manter um ciclo permanente de indignação rentável, no qual cada curtida, comentário ou compartilhamento reforça a bolha de desinformação e vitimização. Essa bolha, alimentada diariamente, serve de escudo político para justificar novas obstruções, para arrecadar fundos com “campanhas de resistência” e para manter o eleitorado em estado constante de alerta e fúria. É um ecossistema fechado: a imagem da fita não informa nada de fato, mas ativa emoções e reforça crenças pré-existentes, tornando a mentira mais resistente a qualquer contraditório.
O gesto foi replicado até em assembleias estaduais, com deputados estaduais bolsonaristas reproduzindo o figurino com esparadrapos e vendas improvisadas, encenando o mesmo roteiro: “o sistema nos cala”. Em alguns casos, chegaram a organizar coletivas de imprensa no próprio plenário, usando o figurino como pano de fundo para discursos inflamados contra o STF e o Executivo. Essa repetição coreografada mostra que não se trata de um ato espontâneo ou de protesto orgânico, mas de uma estratégia coordenada de comunicação política que transforma a tribuna em palco de teatro ideológico. É o uso deliberado do espaço institucional para gerar clipes e fotos que circulam muito mais fora da Casa Legislativa do que dentro, invertendo a função primordial do mandato.
Não: o sistema democrático exige respeito a regras e responsabilidade com a função pública. A liberdade parlamentar não é licença para inviabilizar a Casa ou fabricar espetáculos antidemocráticos. Nenhum parlamentar foi silenciado por opinião; o que se coíbe é o uso da violência física, da mentira organizada e da intimidação deliberada para paralisar o Estado e constranger colegas e servidores. A fita na boca, nesse contexto, não é um protesto inocente, mas um artefato retórico que distorce a realidade, tenta pintar como oprimidos aqueles que, na prática, atacam as instituições e bloqueiam o trabalho legislativo. É mais um capítulo da dramaturgia bolsonarista, em que a imagem vale mais do que qualquer proposta, e o impacto midiático é colocado acima do compromisso com a democracia e com o país.
Submissão aos EUA, ataque à soberania e manual fascista em ação
A semana também escancarou a subserviência internacional do bolsonarismo e revelou como essa postura se entrelaça com o manual de operações do fascismo adaptado ao Brasil do século XXI. Donald Trump decidiu elevar tarifas a 50% sobre importações brasileiras e acionou sanções contra um ministro do Supremo em resposta direta à situação judicial de Bolsonaro. Trata-se de um ataque frontal à soberania brasileira e de um recado perigoso: a ultradireita local mostra-se disposta a prejudicar a economia do próprio país apenas para proteger seu líder e desafiar a atuação da Justiça. Ao invés de defender os interesses nacionais, essa fração política aceita submeter o Brasil às imposições de um governo estrangeiro, desde que isso sirva ao seu projeto de poder.

Nesse tabuleiro, Eduardo Bolsonaro assumiu o papel de lobista transnacional, correndo a Washington para “alinhar respostas” e pressionar contra o STF, com reportagens relatando encontros com autoridades da administração Trump. Essa busca ativa por apoio externo contra instituições brasileiras não é só uma contradição para quem grita “Brasil acima de tudo”: é a negação do próprio discurso nacionalista, um gesto de entrega que enfraquece a autonomia do país e mina a credibilidade das nossas instituições.
Essa submissão externa se encaixa perfeitamente na lógica autoritária já conhecida. Sabotar instituições por dentro, teatralizar a vitimização, inflamar a rua com mitos e mentiras e exigir impunidade aos seus são elementos centrais da gramática do fascismo histórico, agora adaptada ao cenário brasileiro. O fascismo e o nazismo prosperaram quando elites foram lenientes com uma minoria barulhenta que explorava a liberdade para destruir a própria liberdade. No Brasil, a obstrução física do Parlamento, o uso de uma criança como escudo, a exigência de anistia, as ameaças ao STF e a convocação aberta de apoio estrangeiro formam um mosaico coerente: não há interesse em governar, e sim em sequestrar o jogo para que nunca termine.
A união entre a submissão internacional e a aplicação de métodos fascistas serve a um único propósito: enfraquecer o Estado brasileiro, desacreditar o sistema democrático e abrir caminho para um regime baseado no conflito permanente e na instabilidade calculada. A democracia só sobrevive quando pune exemplarmente quem tenta destruí-la e isola politicamente aqueles que transformam o mandato em licença para a baderna antidemocrática. Os encaminhamentos da Mesa Diretora da Câmara à Corregedoria foram um passo importante, mas insuficiente: é preciso manter a vigilância e a firmeza para impedir que o roteiro golpista continue sendo reencenado dentro das nossas instituições.
O custo social do desperdício
Bolsonaristas com mandato não representam os trabalhadores, as mulheres vítimas de violência, os estudantes, os profissionais de saúde, os agricultores familiares ou os moradores de periferia. Pelo contrário: atuam como intermediários de interesses de castas: rentistas que lucram com juros altos, cartéis setoriais que controlam mercados e preços, atravessadores que exploram cadeias produtivas e plataformas que extraem ganhos da precarização do trabalho. Esses parlamentares usam o Parlamento para travar qualquer pauta que ameace o poder desses grupos, servindo como muralha política para evitar reformas que beneficiem a maioria. Fazem isso não por convicção ideológica legítima, mas para proteger um roteiro político baseado no confronto permanente, no desgaste programado das instituições e na criação de crises artificiais.

Não ocupam as cadeiras para aprovar um SUS forte e acessível, uma escola pública de qualidade, mais creches, habitação popular digna, políticas efetivas de proteção ambiental ou avanços em direitos trabalhistas. Pelo contrário: estão ali para fabricar distrações que desviem o foco do que importa. Instauram CPIs com objetivos puramente persecutórios contra adversários, aprovam “marcos” regulatórios que desmontam serviços públicos, aplicam sabotagem regimental a projetos de interesse social e, quando faltam votos ou argumentos, recorrem ao trancaço: a paralisação física das atividades legislativas, impedindo que qualquer tema avance.
Essa lógica ficou escancarada na cena de agosto: enquanto a obstrução ocupava o centro do palco, a vida real do país ficava em suspenso. Projetos cruciais, como programas de combate à fome, de incentivo à agricultura familiar, de construção de moradias populares e de ampliação de vagas em creches, ficaram congelados. Debates essenciais foram adiados, comissões ficaram às moscas, e políticas públicas urgentes perderam semanas preciosas. Quando houve retomada, o Plenário voltou a discutir e aprovar medidas com impacto direto na vida da população, como a ampliação da faixa de isenção do imposto de renda para trabalhadores de baixa renda, provando que, quando a pauta real é colocada à frente da encenação, a vida das pessoas melhora. Antes disso, porém, o Parlamento esteve sequestrado por uma performance cuidadosamente produzida para render imagens, manchetes e cliques, uma encenação incapaz de entregar uma única melhoria concreta à sociedade, mas extremamente eficaz em alimentar a máquina de propaganda e desinformação.
2026: a eleição que decide se o Brasil anda, e o recado claro contra o golpismo
Se quisermos mudança real, 2026 precisa expurgar o golpismo do Parlamento. A urna é o único antídoto democrático contra a farra da obstrução e contra aqueles que usam o mandato como escudo para atacar o próprio sistema que os elegeu. Isso exige consciência política real: compreender que deputados e senadores definem orçamento, fiscalizam o Executivo, interferem no valor da sua aposentadoria, no preço dos medicamentos, no salário mínimo, no transporte público e até na existência de uma creche no seu bairro. É também indispensável consciência de classe: reconhecer quem vive do seu trabalho e quem vive do seu suor, quem defende SUS e escola pública e quem só aparece para fazer pose no plenário antes de votar isenção para os de cima e “ajuste” para os de baixo.

Será preciso pesquisar candidatos com rigor, rejeitar cabos eleitorais de corporações, bancos e lobistas, analisar o histórico de votações, desconfiar de quem promete pátria e família enquanto espalha a próxima mentira em grupos de WhatsApp. Parlamentar que senta na mesa para impedir o funcionamento da Casa não tem compromisso com a sua vida, tem compromisso com o próprio projeto de poder e com redes de influência que nada têm a ver com o interesse público. Esse tipo de parlamentar é um passivo político e social, um entrave que custa caro e nada devolve à sociedade.
E aqui não há meio-termo: não existe simetria quando o assunto é interrupção física do Poder Legislativo, anistia a golpistas e ataque coordenado ao Judiciário com apoio de governo estrangeiro. Isso não é oposição democrática; é ruptura institucional. O golpismo com mandato é ainda mais perigoso porque usa a legitimidade do voto para distorcer as instituições de dentro para fora. Quem se presta a esse papel não merece cadeira no Parlamento: merece responsabilização, isolamento político e, acima de tudo, derrota nas urnas.
A semana de 4 a 8 de agosto deixou um recado direto: enquanto houver bolsonaristas com mandato, haverá quem esteja disposto a parar o país para salvar um chefe. Cabe à sociedade fazer o óbvio: expulsá-los pelo voto, para que a agenda da vida real, saúde, educação, trabalho, moradia, segurança alimentar, volte a avançar sem correntes, sem esparadrapo e sem chantagem.
Comentários